terça-feira, 20 de dezembro de 2011


Tempo. A concepção de tempo. A concepção de tempo e as suas consequências. A concepção de tempo e as suas consequências, não as da concepção, mas as do tempo. Imagine-se um rio. Um rio largo e profundo que corre sempre para a foz, um rio cujo fluxo contínuo nada pode parar. Os tic's precedem os tac's que precedem os tic's que precedem os tac's, e é sempre assim, sempre foi e sempre será. As escolhas que fazemos, aquelas pelas quais optamos a montante alteram o que acontece a jusante, quando optamos no tic, optámos o tac. E aqui estamos nós no preciso momento do orto, na génese de tudo. Imaginem-se agora as probabilidades infinitas, as multiplicações intermináveis, as derivações. Imaginem-se todas as escolhas, todas as esquerdas e direitas, todos os sim e todos os não, imagine-se. Todas as esquerdas e direitas, todos os sim, todos os não, tudo o que é acção, tudo o que acontece. As possibilidades são infinitas e não podemos rever todas as escolhas, somos filhos do acaso - literal e metaforicamente. A mais pequena acção, o mais pequeno atraso altera tudo o que irá ser. O mundo é esta grande mesa de jogo onde toda a humanidade e cada um dos indivíduos que a compõe lançam os dados, e no fim, soma-se tudo. Volta-se a atirar os dados, volta-se a jogar. A borboleta que bate asas somos todos nós. As dimensões paralelas suficientes para comportar todas as possibilidades do que poderia ser o agora seriam intermináveis. Vivemos num universo de infinito em todas as escalas, de todas as perspectivas e para todas as direcções. Somos o eco do acaso produzido pelas escolhas. Escolhas que não podem ser retomadas, que não podem ser alteradas e que noutra dimensão fazem de cada ser um ente total ou parcialmente diferente. As possibilidades foram, são e serão infinitas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


E que são essas coisas aí? São putas que dançam tangos. São entes que deambulam pela sala, seres que andam para cima e para baixo no bordel da vida. E não é isso que se quer? Boémia? Hedonismo? A negra verdade de perversão, a morte antropomórfica das putas. É isso que elas são, putas. Galdérias, meretrizes, pegas, rameiras. Mulheres. O circo de aberrações está na cidade e veio para ficar, os bilhetes são grátis e todos têm lugares na fila da frente. O espectáculo é pavoroso e horripilante, mas ninguém desvia o olhar por um segundo que seja. Gostamos destes rituais de morte, de toda esta obscuridade, do sangue a salpicar-nos as caras. Rimo-nos do cheiro a sangue, das nódoas de desgraça na indumentária alheia. E os passos de tango não cessam, a dança infernal de prazer hipnótico. E aqui estou em sentado na poltrona do bordel a ver as putas que dançam tangos e os seus movimentos provocatórios sem objectivo. E quem as pode julgar? É o seu trabalho, dançam, prostituem-se... Não é o que fazemos todos?

Um bom dia puritano de uma boca sorridente com um olhar caloroso e meigo, o olhar de um gato na floresta. Olhos rasgados, verdes. "Bom dia". Uma bela mulher vestida de branco. Nas suas costas, luz. Está sentada na beira do meu leito, parece tentar seduzir-me no meu momento mais vulnerável. As manhãs são calmas, dotadas de uma plenitude plácida. Da cama vejo o mar, vejo areia e as investidas constantes do mar, vejo-a a ela e o azul do oceano, a luz aquece-me e aquele ondular com cheiro a génese embala os meus ouvidos. Abro e fecho os olhos e ela sempre ali. Cabelo castanho, olhos verdes, trajada de luz. Entro e saio do sono e ela sempre ali. Profundidade mesmerizadora, semblante terno. E a vigília brinca comigo, domina-me em rasgos, adormeço, abro os olhos. E ela mais uma vez ali, a visão divina de perfeição. O mar entra-me no quarto com notas de sal, torna aquele momento puramente metafísico ainda mais sereno. Sinto-me num marasmo, todo o meu corpo coberto de torpor. Torpor puro, torpor de êxtase. Ela sorri, seduz-me a cada piscar de olhos. Nada acontece, fico ali apenas a ir e vir de um estado de aparente consciência - que de realidade tem pouco -, tomado por uma dormência de serenidade, luz e placidez. Toda a verdade existencial num delírio onírico tão verdadeiro como a vida, como o "Bom dia", como a manhã e as gaivotas, como a areia e o mar, como a luz e a perfeição. Não somos nada, não sou nada. Agora sou aquele momento, aquela placidez e luz, serenidade e perfeição. Sou aquele momento, nada mais. Placidez. Já referi a placidez? Já referi a perfeição e a luz? Sim, é isso, a placidez. Placidez, placidez, placidez...

domingo, 18 de dezembro de 2011


Dissertações. Dissertações infinitas sobre todos os tópicos - quase todos. O burburinho generalizado emana das portas, das janelas, ecoa nas ruas, alimenta nações. Toda a humanidade - sem excepção -, focou a sua existência para a reflectividade, atribuiu um "sentido" provisório à sua vida. Durante dias ninguém comeu, ninguém bebeu, ninguém foi trabalhar. Não morreram pessoas, não nasceram outras. A discussão era feita em todos os idiomas, era feita por sem-abrigo, por donas de casa, por políticos, filósofos, crianças, idosos, economistas, escritores, pessoas... Teses sobre os grandes males do mundo, sobre as problemáticas mais prementes. Discussões científicas, práticas, metafísicas. Atacavam-se problemas de todas as frentes, a discussão era o que unia o povo. Foram escritos biliões de ensaios por biliões de pessoas, debateram-se, ajustaram-se reescreveram-se. O mundo tinha parado, mas não de pensar. Pensar era agora uma necessidade, uma necessidade maior que comer, uma necessidade maior que beber. Gentes conversavam pelas ruas, em cafés, nas casas. Foi organizado um concílio com os maiores pensadores vivos daquele tempo - ter-se-iam convocado também os mortos, mas devido à lógica impossibilidade, não aconteceu. Os pensadores dedicaram-se ao exercício que melhor desenvolviam, fizeram-no de maneira ininterrupta, pensaram. Dialectizaram horas, dias, anos a fio. Toda esta imensidão de gente, de gentes, de povos. Todas as mentes capazes do planeta nada mais fizeram que pensar.


Não se chegou a conclusão alguma.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011


O sangue a esvair-se de um corpo ainda quente, ainda mole, ainda humano. Não haja ilusões, está morto. Fui eu que o matei. Nesta viela escura, lúgubre e fria, tudo está morto. A chuva escorre pelas paredes de tijolo dos prédios, segue o seu rumo, o seu rumo como o sangue. Ambos correm para a sarjeta, ambos escorrem para o esquecimento. Misturam-se numa alquimia fatalista, de pleno, de tudo. Alvejei-o à queima roupa e fiquei a ver a vida a escorrer com a água e com o sangue para fora do seu corpo e até à sarjeta. Nada mais existe agora, tudo está morto, esquecido. Não tenho uma razão especial para desprover este pobre ente de vida. Hoje acordei com este capricho, apeteceu-me. Estou ensopado, não só em chuva, em prazer, em energia eterna... Sou tomado por um êxtase de prazer, sou um deus preso no corpo de um homem, sou eterno. Todo o mundo parou, toda a concepção do mundano está congelada. A vida, a morte, a falta de sentido da vida. Somos iguais, eu em pé, à chuva num êxtase de prazer divino, ele, desamparado com cheiro a morte com a chuva a escoar o resto do seu sangue. A vida e a morte a menos de três metros de distância, a discrepância de poder, de possibilidades, a igualdade do ridículo, do inocente. Toda a concepção do que é, do que foi, do que irá ser destruída e engolida por uma qualquer sarjeta, numa qualquer viela, numa qualquer cidade, num qualquer país, num qualquer mundo. Que mundo? O mundo não existe, não existe a realidade, o tempo. Ajeito o chapéu, aperto o casaco, vou para casa, afinal de contas é apenas mais uma terça-feira...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011


Tenho em mim os hábitos de outra pessoa, traços no rosto que não são meus. A minha mente é outra, longe daqui. As minhas roupas, o meu cabelo, a minha pele... Estão impregnados de um cheiro que não me pertence mas que já foi meu. Tenho os vícios do meu vício, os maneirismos de outrem, os hábitos de outros tempos. Quebram-se tradições, é disso que se trata, distanciar-se do que nos era instintivo. Vivo um outro alguém que vive em mim, que já partiu. O que eu sou é uma simbiose, uma metamorfose conjunta, uma crescimento uno de um par. Fomos crianças, mas a inocência há muito foi perdida, duas crianças quase adultas que cresceram juntas e agora bifurcam o seu caminho. Não consigo descascar esta pele, esfolar a alma desta carapaça alheia, lavar a réstia do toque, esquecer o som das palavras. Reproduzo o que foi em mil rasgos oníricos e memórias, tento sem sucesso sair daqui. A semântica dos sons atinge agora proporções meteóricas e sou atingido sem me conseguir defender. Comes-me por dentro, quando já saíste. É tão fácil confundir dois entes e tomá-los por um no momento de distracção lírico e inocente. A realidade não espera por ti rapaz, avançou e deixou-te ao sabor da tua própria solidão, nu neste mundo frio que fustiga as extremidades com ferocidade de besta. Peregrinemos então por caminhos diferentes, talvez no encontremos mais à frente no fado.


(Hoje é tudo o que consigo dar, tempos mais brilhantes virão, com a centelha da criação bem viva.)

domingo, 11 de dezembro de 2011


Acordo num campo de trigo no topo de um monte enquanto o sol nasce, não me lembro de nada. Uma simbiose entre o real e o onírico, um tudo salpicado de nadas. As árvores são violeta, o céu amarelo. Dentro da caixa de pandora, o comum dos mortais sobrevive não mais do que alguns vislumbres. A escuridão passa em gomos à velocidade da luz e trespassa qualquer corpo que esteja no seu caminho. Um guardião biónico guarda a entrada e acompanha quem por ali à noite passa, diz como sente, fala de grandes verdades dogmáticas sem importância alguma. O manifesto surrealista é declamado ao fundo por mil poetas pintores que cantam como anjos de Caravaggio. Giacometti esculpe os habitantes deste universo paralelamente perpendicular, as dimensões mesclam-se, não há perspectiva. É escuro, frio e assustador, não é para os fracos. Os fracos de alma, os fracos de espírito, nem tão pouco para os de fé. O vosso deus não vou preparou para o que aqui acontece e não detém qualquer poder aqui, é outro mero e ridículo ente. Sim, é esse o meu trabalho, ridicularizo divindades, religiões completas, ideologias sólidas. Concepções dentro de concepções, atravessadas por perspectivas labirínticas, vistas de ângulos mortos no topo de objectos impossíveis. Espirais de léxico, serras de palavras, núcleos de ideias. Pensamentos com pernas deambulam por todo o lado e amedrontam quem passa, aqui ninguém está seguro. Figuras amorfes e sinistras que apavoram os monstros do pior imaginável pesadelo. A minha mente...Buh!...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011


Um parque infantil deserto, ruas, carros, casas abandonadas... Uma terra de morte, a marca do homem. Quem mente tão brilhante... Por vezes brilhante demais. Perdemo-nos em extremismos, viramos as costas à democracia ao mínimo revés. Ditaduras por toda à parte. Somos facilmente manipuláveis nestas circunstâncias, ficamos cegos de desespero, tomados por um saudosismo irracional, regredimos. O capitalismo é um mal necessário, somos servos do fiduciário. O cancro do dinheiro espalha-se por toda à parte, somos materialistas, consumistas e tornamo-nos  chauvinistas. Temos memória curta e subvalorizamos liberdades, afinal são garantidas, não precisamos de nos preocupar. Entregamos a liberdade - iludidos - a lideres carismáticos, fortes e sensatos, tudólogos encartados e com diploma. Por favor!, poupem-me os falsos nacionalismos, estou farto de hipocrisias sujas e baratas. Sou tomado por uma enorme cefaleia. Será a misantropia a solução? Não sei, mas parece-me irónica a ideia de odiar algo a que pertencemos, mas por outro lado, não fui eu que pedi a integração e não posso fazer grande coisa para me apartar do mesmo. E foi este o inferno nuclear o presente que o extremismo bélico nos deixou. Ai está, apreciem o disforme espectáculo de morte que todos encenamos ou do qual somos culpados, pelo menos, como observadores. Que questiono eu? A própria humanidade é toda ela pintada de misantropia. É claro, está à vista, à superfície e no interior de tudo. Agora é tarde demais, Chronos nunca retrocede na sua vereda. E agora o que fica? Talvez tanto quanto existia... Pouco e sem sentido. Nações inteiras compostas apenas por cidades fantasmas, o rosto da morte colectiva no vazio.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


A jarra de flores, o prato de queijo e os guardanapos dobrados em triângulo. A quotidiania, o ar gélido a condensar-se no ar. O chão de tábuas de madeira, a vida que range a cada passo. Somos todos parvos, somos estúpidos. O cheiro a cabelo sem champô, o cheiro natural a amor acabado de fazer. O sol entra pela janela e aquece os corpos. A alma, essa, já esta bem quente. Pequenos olhares que dizem tudo, palavras que eliminam o nada. A cumplicidade não se pode comprar, pelo menos não aquela. Uma manha que podia ser tarde. É verão. É verão mas não esta demasiado calor, os corpos nus em cima da cama ainda são unos. Ninguém fala, mas aquele silencio é mais poderoso que mil sinfonias barrocas, mas expressivo que mil quadros de Vincent - fosse isso possível. É um pequeno almoço de aspecto singelo, de aparência sublime. O café evapora-se perfumando o ar, o croissant no prato é de um dourado cabelo de anjo. O tempo esta parado, nada acontece la fora, no mundo. O cheiro a Tejo, a brisa, o cais. Ampulhetas que pela força do desejo seriam voltadas ao contrario e no grão de areia exacto deitadas para que nada se mexesse. O azul, o branco, os caracóis ao ar. A cadeira sozinha no centro do quarto com um novelo no assento. O quarto parece uma pequena cela, mas toda a luz do mundo se encontra com a cadeira naquela divisão. Os campos de trigo lá fora, os corvos. As riscas dos lençóis. O silencio total. A memoria não precisa de som, não naquela circunstância, não naquele momento. Dormitar serenamente, ir acordando e amando. Amando com os olhos, com as mãos, amando em silêncio. A luz, sim, a luz. Rosas de aspecto velho a equilibrar toda a sala, todo o mundo se poderia dizer sob a sua homeostase.  O papel e a caneta levemente pousados sobre a cómoda. Corpos nus, puros e lavados de alma branca. A única verdade do mundo, sem necessidade de mais. A placidez do momento. Momento, suspenso no tempo, na memória e completamente inocente da metafísica.

domingo, 4 de dezembro de 2011


O que e um deus para um nao-crente? Nada! digo-vos eu. No prisma que vos apresento O-Todo-Poderoso Senhor Deus passa a ser deus, sem a capitalidade gráfica e ideológica a qual um ente perfeito seria intrínseco. Sou um homem de ideologias, não de deuses. E aqui estou eu, mais um insignificante ser do infinito imensurável a obliterar o dito "todo-poderoso". Perfeição e poder intemporal anulados por mera descrença de índole tão humana. E é assim, a fé, as ideologias, tudo submerso para o esquecimento pelo vórtice autoclismático do discernimento e do problematizar do insignificante Homem. Repare-se como o sobrenatural é uma criação tão nossa, tão humana. Ainda assim tem o seu valor, é um fenómeno algo interessante que pode ser fundamentado pelo nosso fatalismo - mais uma vez - tão humano e porque em momentos de desespero ansiamos para que o desfecho de tudo esteja para alem de nos. Que ridícula é a própria concepção. Explicamos os nossos medos com o monstro debaixo da cama. Ridículo, nada mais posso dizer... Por vezes sinto-me farto de pensar o mundo, a irremediável falta de sentido da existência atinge-me cada vez com mais veemência e intensidade.


Não conhecer a cara no espelho. Aprisionado nele mesmo, em mim, em si, no corpo. Prisão domiciliária para a mente, o degradar gradual. Passei a minha vida a fugir. Conheci pessoas, lugares, sorrisos e olhares, sons e visões. Peregrinei de porto em porto, passando as fronteiras da vida, a metafísica do sentido, a heterogeneidade tantas vezes homogénea da condição humana. Corri sem olhar para trás, refugiei-me do próprio tempo, iludi-me. A morte corre na direcção oposta, vai apanhar-me. A perspectiva do fim dos tempos, o buraco negro eterno e o oxímoro que esta frase representa. A realidade é tão abrangente, tão ampla e avassaladora que tem que ser fragmentada em pequenas trivialidades ridículas. Não sabemos o que fazemos aqui, não nos preocupamos. Procuramos explicações para tudo, queremos saber e ser donos de todo o infinito conhecimento e ao mesmo tempo, ironicamente, nada de importância significativa. Gosto de ser um espectador, um observador, um intérprete. Do meu cadeirão consigo por vezes ver tudo o que há, tudo o que vai haver. Mas nada disso importa, todas as minhas concepções e teorias metafísicas desaparecerão com a própria. Ridícula, é essa a condição humana.
Por vezes farto-me de ser um pensador... Qual o propósito não sei, mas vou continuar a empurrar a pedra até ao cimo do monte. Talvez um dia a mantenha lá no topo e me sente nela, observando tudo de cima.

terça-feira, 29 de novembro de 2011


Somos imortais. O ar electriza-se numa aura de excitação extasiante e aprazível. Os deuses invejam-nos. Toda a vida na palma da mão, ao alcance de um estalar de dedos. Fazemos as leis e ignoramos as que nos são exteriores, não queremos saber. A nossa preocupação é de índole boémia, hedonista, é esse o nosso fado. Passamos noites em claro, escrevemos o destino do mundo e nem a morte nos pode parar. Metafísica bastante para este universo e para os próximos. Não temos deus, mas mais importante, ele não nos tem a nós. Autoridades independentes e supremas, omnipotentes. Noites infinitas, nasceres do sol perfeitos. Um, dois, inúmeros copos meio-cheios. Somos dourados, somos eternos. Livros, sorrisos, ruas a subir e a descer com elevadores à disposição. Observamos a vida do alto dos telhados, não fazemos parte do mundano. Olhos azuis, cabelos de ouro, formas perfeitas. O sol como alimento, a felicidade como água, a cultura é o ar que respiramos. Este mar, este povo, esta calçada... Comida rápida, queremos agora, para já. A carpete vermelha estende-se diante dos pés. Personagens principais no palco da vida. Observem e aplaudam, pois é tudo o que podem fazer. Frases dispostas com aparência aleatória e com sentido de verdade. É assim o nosso universo, é assim que o fazemos e somos apenas visitantes desconhecidos dos quais nunca ouvirão falar.

domingo, 27 de novembro de 2011


Seria o amor a única razão da sua vida? Certamente e de maneira despontante, não. Se fosse esse o caso a sua existência estava agora eclipsada. Mas a verdade é que não está, ninguém desapareceu num passo de mágica, estranha e surpreendentemente o mundo não foi engolido numa grande explosão celestial. Pouco mudou, aliás. Até porque não foi o amor que desapareceu - pelo menos não em toda plenitude bilateral da questão. A chama não se apagara, estava apenas a arder a uma voz. E aquele ente que tinha como vaticínio o desaparecimento de tudo o que conhecia em concomitância com o amor, muito surpreendido ficou com o desfecho da contenda. Que reconhecimento cartográfico andará a fazer a língua, outrora sua, neste momento? Que anatomia estará a estudar? A curiosidade começava e acabava num movimento irregular, sincopado. Queria saber tudo e ao mesmo tempo nada dentro do campo da feliz inocência e da dura realidade. O ciúme, a tristeza, a indiferença e até a felicidade. Será mesmo o amor o sal da vida? Talvez seja, afinal incontáveis terras foram salgadas de maneira a que a vida não mais brotasse daquele mesmo solo. Que fatalidade ridícula... E não o são todas as fatalidades? O conhecimento do futuro assusta-nos. Falamos sem falar, profetizamos em línguas mortas que ninguém compreende, somos poetas pensadores. O tempo urge, o tempo esgota-se, o tempo é apenas o tempo e nada o é sem ele. Alquimias avassaladoras, fogos místicos rodeados por danças espirituais. Gritos viscerais despontam das profundezas e atiram aberrações retóricas à cara dos espectadores que aplaudem inocentemente entretidos pelo espectáculo que na realidade não conhecem e ao qual não estão a prestar atenção. Desconhecidos deambulam pelas ruas escuras sem rumo - eles e as ruas - com a cara tapada. É de noite e parecem caminhar com intenções homicidas. O rosto do estigma e da incompreensão. "Poetas" dizem eles, "poetas loucos"...

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Onde param as tuas mãos? Abre-se um novo capítulo. Luz, luz de todos os cantos do universo, do ser. Flutuo em êxtase, sou o infinito. Lençóis lavados e pendurados ao sol sobre uma alfacinha paisagem que tanto deve ao rio, o Tejo. A navegação faz-se à vista, de nada serve traçar rotas. Voar não é um exercício matemático, o verdadeiro voo é desprovido de cálculo de previsão. Existe o risco de cair? Existe pois!, está ali, bem real. E que importa isso? Depois de voar nada mais importa. O disco que toca e gira e gira e gira... gira como o mundo. Em que parte dele param as tuas mãos? Não sei se param sequer. Orfeu descreve a viagem que Morfeu conduz até ao onírico. Se chegámos ao ponto sem retorno não importa, fomos felizes, vivemos. E que é viver? Lorpices, falsas questões. Ruas que levam a sítios, sítios que levam a coisas. Árvores, verdejantes pomares. O fruto está em todo lado e é doce, realmente doce. Por vezes o povo não o deixa amadurecer, outras não chega a amadurecer de todo. Gostava de saber porque céus voas, o que vês daí de cima onde já voei contigo. O unicórnio branco - hoje é esta a cor que quero que tenha. Branco placidez, branco plenitude, branco eternidade. A paixão move o mundo, não te desenganes meu rapaz, não há nada que não possa fazer, e, em fim último, também não há nada que possa. É assim, uns voos aqui, uns brancos ali, uns capítulos acolá e também umas paixões. (Hoje estou a espremer o fundo do depósito.) Hoje parece-me o assunto ser esse, luz. É tão bom como outro qualquer. As descidas às profundezas e ascensões aos píncaros fazem de nós o que somos, a incolumidade com que chegamos ao fim da jornada faz de nós o que somos no pleno, no infinito.  Preciso de elevadores infinitos, quero subir o mais alto que possa. Quero sentar-me no topo e observar o tudo de cima. Será pedir demasiado? (O melhor de minha produção literária? Não o será certamente, mas pode ser que distraia uma qualquer alma do modo que distraiu por uns momentos a minha. Ao menos o que se faz vai ficando.)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


Ruas que levam a lugar algum ou ao cimo do monte. Assomo à aparente maturidade e maioridade mas não perco o sangue novo. O vento embate-me na face, refresca. Estou em pleno mas quero mais. Mil culturas, lugares, pessoas, conversas aleatórias sobre a metafísica e sobre os glúteos quase maldosamente torneados à vista para pura tentação. Intermináveis tardes, manhãs e noites. Bater pensamentos na mesa, a dialéctica eléctrica e electrizante, o saber ao alcance de um toque.  Interromperam-me a produção - sim, a literária. Tomates, laranjas, limões, uma ode à alegria, à vontade de viver. Vermelho, laranja amarelo, só com um pouco de sal. Põe açúcar nesse café, mexe bem. É fácil, estamos destinados a fingir. Tenho saudades das sestas à tarde, de atravessar as linhas dos livros de colorir e não me importar com isso, do sol a entrar pela janela e a embater na parede do corredor, da despreocupação... No país do fado somos por vezes alheio ao mesmo, ao nosso próprio. Não interessa o amanhã tão importante sem o hoje descartável. É bom sair da escuridão e escrever um pouco de vez em quando, aquece. Uma plataforma giratória de entes humanizados que partilham sem parar, que gostam sem amar e que por vezes amam também. Caleidoscópio de prazer pautado por uma inebriação flagrante. É o poder das drogas sem consumir qualquer substância, a vida eterna, a inspiração profunda e sentida. Luz a emanar das pontas dos dedos, de todas as extremidades, a levitação. Não seria perfeito se horizonte sempre perfeito assim fosse? Grandes metrópoles boémias a abarrotar de pessoas, cheias de arte, cheias de cultura, cheias de pessoas artísticas e boémias inundadas por cultura. Onde está deus (letra minúscula propositada que o corrector ortográfico insiste em sublinhar a vermelho) - brindes da era digital? Não está, dele não precisamos e para nós não existe, afinal de contas somos invencíveis. Gozamos dela e não precisamos de mais nada. Quero congelar-me aqui, neste momento e não pensar em mais nada, mas a metafísica continua, o pragmatismo prossegue. Não me preocupo, viverei para sempre.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011



É uma caveira e do seu interior brotam rosas vermelhas. Olha para mim de olhar - literal e metaforicamente - vazio. Aquela composição representa, toda ela, toda a metafísica que há para saber. Rosas de um vermelho vivo, vibrante embatem na morta frieza daquele crânio. Ser as rosas ou a caveira? A morte consciente ou uma morte inocente e adiada. A rosa apodrece ao segundo, torna-se fétida, mas por agora, vive. Duas realidades decapitadas, uma morta e a outra com o fado traçado mas ainda vagamente pulsante. Sou toda a composição, a caveira e as rosas, a flor veemente e o crânio morto. Não há nada para dizer, não existe nada mais que a metafísica. Tudo é vida ou morte, ou tudo é morte sem ainda o saber. Como era inocente Alberto Caeiro... Talvez mais feliz, mas inocente.

sábado, 19 de novembro de 2011



 Cego, oval. Uma casa vermelha na pradaria. Um violino violento violeta veementemente violado. Corta-se a corda, queda total. Baque surdo e abafado. O chão emana luz e o reflexo de um candelabro numa sala barroca com um piano branco de aspecto clássico com pormenores dourados é bem visível. Da janela girassóis, Van Goghs e cavalos. Comboios em torno do sol, carris de cor vermelha. Almofadas de papel, músculos cansados. O embate da chuva no cimento, o fato molhado, a pasta, o homem, o guarda chuva. Tudo num cinzento macilento e lúgubre. A solidão de uma quinta-feira a tarde que podia ser um sábado, uma terça, uma sexta, um domingo ou uma quarta. Para onde vai? Ele próprio não sabe, mas move-se mercê da inércia e não tem vontade orgânica para parar o automatismo. É assim uma tarde em Estugarda, mas podia ser em qualquer outro lugar. Existem janelas verdes e olhos que espiam em qualquer nome de uma tabuleta. As maçãs que caem do céu são verdes também, amargas como a vida, perecíveis como a frágil realidade. A metafísica tornou-se ridícula, uma falsa questão. O quadro não está acabado, estou apenas a olhar para a tela, ainda não o comecei. Rega-se a lógica com um pouco de loucura, que mal fará? Rothko Rothko Rothko. De quanta escuridão dispõe este mundo? A luz bate-me de frente na cara, encadeia-me. Encontro-me num estado de sublimação tão iluminado que mal consigo ver. Um candeeiro de metal frio, flores para os pobres, um banco de jardim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

 Cadeira no topo da sala, dados vermelhos rolam, Chopin toca ao fundo. Não é desta e não será da próxima, absolutos não se fazem em fragmentos, não se produzem em momentos. Do alto olha um homem barbudo - chamam-lhe "Jesus" -, não o conheço. Corro para o passado com medo de um futuro que já conheço. Os ponteiros rodopiam freneticamente como roldanas desgovernadas e nada os pode parar. Sento-me na cadeira e olho impotente. Descarrego, ejaculo, penso, idealizo. Mais uma vez os ideais, obsessão irracional (encontrar explicação assim que possível). Os números, as adições, as subtracções, as raras divisões e as inocentes multiplicações. O telefone toca toca toca toca toca toca... ninguém atende. O amanhã é agora, hoje. O ontem nunca o foi, não tenho memória de tal.  Ler, escrever, pensar. Pensar pensar pensar pensar - pensar é bom. O drapejar da bandeira, a toada do mar, o sangue a escorrer. A figura antropomórfica olha-me lá do alto cada vez com mais desconfiança e desaprovação - curiosamente, nada faz. Observa-me apenas na cadeira. Estou sentado, calmo. Analiso, intelectualizo, problematizo. Nada de surpreendente na verdade, apenas a visão de um moribundo consciente da corrente inconsciência.