quarta-feira, 30 de maio de 2012


E de rompante o som metálico do isqueiro de marca Zippo a abrir. E floresce uma chama na noite, uma chama que incendeia o pano branco liberdade que pende da garrafa. Apesar de não ser barman aquele homem segura um cocktail na mão. Molotov é o seu nome. Pode ser mais inebriante que qualquer outra bebida de teor alcoólico, excitar mais multidões que qualquer chuva de cerveja.
 E assim, de súbito o objecto com nome de bebida - mas decerto desaconselhável para ingestão - percorre os ares do Rossio e sibila em direcção ao seu alvo, reclamando por menos impostos, reclamando por mais pão para a boca dos pobres, reclamando por uma vida mais justa, ou não reclamando por nada.
 Ricardo encontra-se entrincheirado por detrás do muro de escudos daquele plástico duro - ao qual os mais pretensiosos se referem como "policarbonato" -, o equipamento de protecção pesado fá-lo suar e a viseira do capacete turva-lhe a visão.
 Ricardo, de olhar perdido e totalmente alheio ao que se passa na Praça D. Pedro IV, relembra aquele dia quente de Verão em que atrás do velho celeiro encontrou um homem crivado de balas.
 O Sol ia já bem alto, quando Ricardo, 11 anos, cabelo loiro, olhos azuis, jardineiras rasgadas nos joelhos, t-shirt vermelha e boné coçado, saiu de casa para ir ter com o Pedro, um miúdo franzino e com um ar - considerariam alguns - um pouco tísico, lá da aldeia, com o qual mandava pedras aos ninhos das árvores e companheiro de tantos roubos de maçãs na banca do Senhor Joaquim. Maçãs, laranjas, pêras... Por alguma razão que o mesmo - e até eu, o próprio narrador - desconhecemos até à data, algo o impeliu a tomar o caminho que assomava perto da anciã azinheira, subindo o cabeço e passando pelo velho celeiro abandonado no vale, em vez do habitual caminho de terra batida, onde tantas vezes tinha esfolado os joelhos em tropelias ciclísticas com o mesmo Pedro cuja casa ficava no final da estrada, depois da casa da Rosalina e do velho Abílio.
 Ao descer o vale, e aproximando-se daquele aglomerado de madeira que de tantas toneladas tinha sido albergue - mas que agora ameaçava ruir a qualquer momento fustigado pelas térmitas e outros os males que afectam a madeira -, sentiu um cheiro pútrido que lhe subia as narinas como se de um foguetão se tratasse, e que lhe bateu na cara tal qual soco de pedra.
 Pedro, movido por um desejo mórbido de descortinar a proveniência daquele trovão olfactivo, e tal qual perdigueiro em buscar da presa, dirigiu-se para trás do velho e cansado barracão, para trás do celeiro, o celeiro da morte. E ali estava ele, um homem crivado de buracos de bala que tinham apenas competição à altura por parte das varejeiras que rapinavam a carne podre.
 E ali estava ele, o "Cobras" como era conhecido pelos poucos que lhe distinguiam as feições, e cuja alcunha assentava que nem uma luva devido ao facto do "Cobras" ser mau como as mesmas, a meditar - mas pouco - olhando para o céu de olhos arregalados como se um dilúvio de proporções bíblicas fosse fazer chover algo ridiculamente inusitado, como projecteis de chumbo - a verdade é que as balas apareceram de algum lado, de onde ao certo, ninguém sabe. Estava morto. E bem morto por sinal, tão morto quanto possível.
 Pedro fugiu a gritar entre choros e soluços, ao tropeção por entre as giestas e os cardos e o centeio selvagem perdido pelo trilho e ali deixou o Cobras de olhos arregalados e expressão surpresa - por esta não esperavas tu ó fuinha! Apanharam-te, não com as calças na mão, mas a correr pela vida e a ver se não te caía o chapéu de palha. (Mas aqui para nós. Quem é que se preocupa com um chapéu de palha enquanto é perseguido por um grupo de homens de aspecto duvidoso munidos de armas de fogo? Vá se lá entender...) -, sozinho e com o estúpido chapéu de palha caído ao seu lado. O revólver que tinha à cintura se de entalhes fosse munido, pareceria um reco-reco, tantas eram as vidas que já tinha ceifado.
 Cobras era o que se pode chamar, um assistente da morte, um assassino por contrato. Cobras matava porque lhe pagavam, para ele era razão suficiente, ironicamente foi-o para os seus carrascos também...

quarta-feira, 9 de maio de 2012


Amotinei-me, revoltei-me, saí à rua. Levava em mim um ódio bárbaro a tudo e a todos, ao instituído e ao inovador. Revoltei-me com o passado e com o futuro, e o meu presente tanto ardia em revolta. Tomado por esta vontade de subversão, por toda esta revolução interior. (Fosse lá saber-se porquê, mas tinha em mim esta cascata de sentimentos, esta que desembocava num mar revoltoso.) Saí, olhei para todo o lado com a fúria no olhar, tudo isto tinha de sofrer uma mudança, uma mudança profunda. A sociedade não voltaria a ser a mesma - pelo menos nos moldes em que a conhecemos. Andei, andei pelas ruas da cidade determinado, imutável, amotinado. Ia montar uma barricada de intelectualidade e atirar um pouco de bruta violência física para a fogueira também. 


E assim, decidido e resoluto!...


Voltei para casa, o tempo não está para revoluções. Tenho a carteira vazia e ainda por cima as nuvens ameaçam chover-me em cima. Talvez noutro dia... Agora tenho preguiça.