quinta-feira, 20 de setembro de 2012


E depois olhamos para os velhos, olhamos para a morte, é só mais um reflexo, um reflexo no espelho, um reflexo nosso, um reflexo próximo, só somos isso, o reflexo no espelho, só somos os velhos, só somos a morte, apodrecemos prematuramente, no caixão, sem nunca ter saído dele, sem nunca ter entrado, debaixo da terra, subterrados, deixados ali, sozinhos, mortos, a olhar para o espelho, para o espelho que não existe, para os velhos que são outros, que estão ali, mas que somos nós, que estamos aqui, não somos o futuro, nunca fomos passado, não somos nada de concretizado, e ficamos ali a apodrecer, em decomposição, ficamos sós debaixo do chão, falamos sozinhos, pensamos sozinhos sem nunca pensar, sem nunca estar sozinhos, sem nunca amar e sem vizinhos, ficamos na cova sem nunca para lá ter tido os pés, nascemos na cova como que in medias res, escutamos o que os outros dizem sem nunca que eles tenham dito nada, sem que nunca tenham existido, mas ouvimos o que dizem, pensamos, escrevemos, falamos calados, escrevemos deitados e sem mãos, com a mente, sem cérebro, não somos nada sendo a única coisa que existe, a única coisa que subsiste, um arremedo de ente que resiste, dentro do caixão, sozinho, esquecido, cheirando a morte, cheirando a podre, e o espelho não se move, fica apenas ali, a reflectir, e nós ficamos aqui a olhar para o reflexo, sós e de dentro do caixão, e tudo à volta cai e tudo isto foi um sonho, e nada disto existiu, talvez nem o pensamento, talvez nem Descartes, e tudo foi em vão, infrutífero, mas é assim que somos, talvez sem caixão, talvez sem terra, definitivamente sem chão, metafisicamente inexplicáveis, inexistentes, inadaptados, ineptos e inaptos, irracionais e mentecaptos, e vamos para aqui e vimos dali e vemos Dali, e nunca fomos a lado nenhum, nunca vimos nada, somos senão uma fachada, fechada, encerrada tal como o caixão de onde nunca saímos, nem para ir aqui, nem para vir dali, nem para ver Dali, e tudo isto é surreal, é surrealista, é irreal e irrealista, uma realidade que muda, transformista, sem objectivo, sem conquista, e escrevo tudo isto do caixão, sem nunca sair, o Sol lá fora queima e arranca-me pedaços, pedaços de mim, que nunca tive, que nunca hei-de ter, que já tive mas que agora se decompõem, lentamente, até que a morte chegue, mas já estou dentro do caixão, já estou morto, não quero sair, e faço força para o abrir, o caixão, para sair do chão, quero ir embora, partir agora, não olhar para o espelho e tê-lo sempre em mira, é o espelho, é o caixão, é o chão, são os velhos, e sou eu aqui a apodrecer, a escrever, a olhar para o espelho, velho, no caixão, sem noção do que será levitar, sair do chão, voar e ver tão lúgubre cena, ver do alto, o mórbido visto do céu, o fúnebre reduzido a borrões, manchas no solo e nunca dele saí.