terça-feira, 29 de novembro de 2011


Somos imortais. O ar electriza-se numa aura de excitação extasiante e aprazível. Os deuses invejam-nos. Toda a vida na palma da mão, ao alcance de um estalar de dedos. Fazemos as leis e ignoramos as que nos são exteriores, não queremos saber. A nossa preocupação é de índole boémia, hedonista, é esse o nosso fado. Passamos noites em claro, escrevemos o destino do mundo e nem a morte nos pode parar. Metafísica bastante para este universo e para os próximos. Não temos deus, mas mais importante, ele não nos tem a nós. Autoridades independentes e supremas, omnipotentes. Noites infinitas, nasceres do sol perfeitos. Um, dois, inúmeros copos meio-cheios. Somos dourados, somos eternos. Livros, sorrisos, ruas a subir e a descer com elevadores à disposição. Observamos a vida do alto dos telhados, não fazemos parte do mundano. Olhos azuis, cabelos de ouro, formas perfeitas. O sol como alimento, a felicidade como água, a cultura é o ar que respiramos. Este mar, este povo, esta calçada... Comida rápida, queremos agora, para já. A carpete vermelha estende-se diante dos pés. Personagens principais no palco da vida. Observem e aplaudam, pois é tudo o que podem fazer. Frases dispostas com aparência aleatória e com sentido de verdade. É assim o nosso universo, é assim que o fazemos e somos apenas visitantes desconhecidos dos quais nunca ouvirão falar.

domingo, 27 de novembro de 2011


Seria o amor a única razão da sua vida? Certamente e de maneira despontante, não. Se fosse esse o caso a sua existência estava agora eclipsada. Mas a verdade é que não está, ninguém desapareceu num passo de mágica, estranha e surpreendentemente o mundo não foi engolido numa grande explosão celestial. Pouco mudou, aliás. Até porque não foi o amor que desapareceu - pelo menos não em toda plenitude bilateral da questão. A chama não se apagara, estava apenas a arder a uma voz. E aquele ente que tinha como vaticínio o desaparecimento de tudo o que conhecia em concomitância com o amor, muito surpreendido ficou com o desfecho da contenda. Que reconhecimento cartográfico andará a fazer a língua, outrora sua, neste momento? Que anatomia estará a estudar? A curiosidade começava e acabava num movimento irregular, sincopado. Queria saber tudo e ao mesmo tempo nada dentro do campo da feliz inocência e da dura realidade. O ciúme, a tristeza, a indiferença e até a felicidade. Será mesmo o amor o sal da vida? Talvez seja, afinal incontáveis terras foram salgadas de maneira a que a vida não mais brotasse daquele mesmo solo. Que fatalidade ridícula... E não o são todas as fatalidades? O conhecimento do futuro assusta-nos. Falamos sem falar, profetizamos em línguas mortas que ninguém compreende, somos poetas pensadores. O tempo urge, o tempo esgota-se, o tempo é apenas o tempo e nada o é sem ele. Alquimias avassaladoras, fogos místicos rodeados por danças espirituais. Gritos viscerais despontam das profundezas e atiram aberrações retóricas à cara dos espectadores que aplaudem inocentemente entretidos pelo espectáculo que na realidade não conhecem e ao qual não estão a prestar atenção. Desconhecidos deambulam pelas ruas escuras sem rumo - eles e as ruas - com a cara tapada. É de noite e parecem caminhar com intenções homicidas. O rosto do estigma e da incompreensão. "Poetas" dizem eles, "poetas loucos"...

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Onde param as tuas mãos? Abre-se um novo capítulo. Luz, luz de todos os cantos do universo, do ser. Flutuo em êxtase, sou o infinito. Lençóis lavados e pendurados ao sol sobre uma alfacinha paisagem que tanto deve ao rio, o Tejo. A navegação faz-se à vista, de nada serve traçar rotas. Voar não é um exercício matemático, o verdadeiro voo é desprovido de cálculo de previsão. Existe o risco de cair? Existe pois!, está ali, bem real. E que importa isso? Depois de voar nada mais importa. O disco que toca e gira e gira e gira... gira como o mundo. Em que parte dele param as tuas mãos? Não sei se param sequer. Orfeu descreve a viagem que Morfeu conduz até ao onírico. Se chegámos ao ponto sem retorno não importa, fomos felizes, vivemos. E que é viver? Lorpices, falsas questões. Ruas que levam a sítios, sítios que levam a coisas. Árvores, verdejantes pomares. O fruto está em todo lado e é doce, realmente doce. Por vezes o povo não o deixa amadurecer, outras não chega a amadurecer de todo. Gostava de saber porque céus voas, o que vês daí de cima onde já voei contigo. O unicórnio branco - hoje é esta a cor que quero que tenha. Branco placidez, branco plenitude, branco eternidade. A paixão move o mundo, não te desenganes meu rapaz, não há nada que não possa fazer, e, em fim último, também não há nada que possa. É assim, uns voos aqui, uns brancos ali, uns capítulos acolá e também umas paixões. (Hoje estou a espremer o fundo do depósito.) Hoje parece-me o assunto ser esse, luz. É tão bom como outro qualquer. As descidas às profundezas e ascensões aos píncaros fazem de nós o que somos, a incolumidade com que chegamos ao fim da jornada faz de nós o que somos no pleno, no infinito.  Preciso de elevadores infinitos, quero subir o mais alto que possa. Quero sentar-me no topo e observar o tudo de cima. Será pedir demasiado? (O melhor de minha produção literária? Não o será certamente, mas pode ser que distraia uma qualquer alma do modo que distraiu por uns momentos a minha. Ao menos o que se faz vai ficando.)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


Ruas que levam a lugar algum ou ao cimo do monte. Assomo à aparente maturidade e maioridade mas não perco o sangue novo. O vento embate-me na face, refresca. Estou em pleno mas quero mais. Mil culturas, lugares, pessoas, conversas aleatórias sobre a metafísica e sobre os glúteos quase maldosamente torneados à vista para pura tentação. Intermináveis tardes, manhãs e noites. Bater pensamentos na mesa, a dialéctica eléctrica e electrizante, o saber ao alcance de um toque.  Interromperam-me a produção - sim, a literária. Tomates, laranjas, limões, uma ode à alegria, à vontade de viver. Vermelho, laranja amarelo, só com um pouco de sal. Põe açúcar nesse café, mexe bem. É fácil, estamos destinados a fingir. Tenho saudades das sestas à tarde, de atravessar as linhas dos livros de colorir e não me importar com isso, do sol a entrar pela janela e a embater na parede do corredor, da despreocupação... No país do fado somos por vezes alheio ao mesmo, ao nosso próprio. Não interessa o amanhã tão importante sem o hoje descartável. É bom sair da escuridão e escrever um pouco de vez em quando, aquece. Uma plataforma giratória de entes humanizados que partilham sem parar, que gostam sem amar e que por vezes amam também. Caleidoscópio de prazer pautado por uma inebriação flagrante. É o poder das drogas sem consumir qualquer substância, a vida eterna, a inspiração profunda e sentida. Luz a emanar das pontas dos dedos, de todas as extremidades, a levitação. Não seria perfeito se horizonte sempre perfeito assim fosse? Grandes metrópoles boémias a abarrotar de pessoas, cheias de arte, cheias de cultura, cheias de pessoas artísticas e boémias inundadas por cultura. Onde está deus (letra minúscula propositada que o corrector ortográfico insiste em sublinhar a vermelho) - brindes da era digital? Não está, dele não precisamos e para nós não existe, afinal de contas somos invencíveis. Gozamos dela e não precisamos de mais nada. Quero congelar-me aqui, neste momento e não pensar em mais nada, mas a metafísica continua, o pragmatismo prossegue. Não me preocupo, viverei para sempre.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011



É uma caveira e do seu interior brotam rosas vermelhas. Olha para mim de olhar - literal e metaforicamente - vazio. Aquela composição representa, toda ela, toda a metafísica que há para saber. Rosas de um vermelho vivo, vibrante embatem na morta frieza daquele crânio. Ser as rosas ou a caveira? A morte consciente ou uma morte inocente e adiada. A rosa apodrece ao segundo, torna-se fétida, mas por agora, vive. Duas realidades decapitadas, uma morta e a outra com o fado traçado mas ainda vagamente pulsante. Sou toda a composição, a caveira e as rosas, a flor veemente e o crânio morto. Não há nada para dizer, não existe nada mais que a metafísica. Tudo é vida ou morte, ou tudo é morte sem ainda o saber. Como era inocente Alberto Caeiro... Talvez mais feliz, mas inocente.

sábado, 19 de novembro de 2011



 Cego, oval. Uma casa vermelha na pradaria. Um violino violento violeta veementemente violado. Corta-se a corda, queda total. Baque surdo e abafado. O chão emana luz e o reflexo de um candelabro numa sala barroca com um piano branco de aspecto clássico com pormenores dourados é bem visível. Da janela girassóis, Van Goghs e cavalos. Comboios em torno do sol, carris de cor vermelha. Almofadas de papel, músculos cansados. O embate da chuva no cimento, o fato molhado, a pasta, o homem, o guarda chuva. Tudo num cinzento macilento e lúgubre. A solidão de uma quinta-feira a tarde que podia ser um sábado, uma terça, uma sexta, um domingo ou uma quarta. Para onde vai? Ele próprio não sabe, mas move-se mercê da inércia e não tem vontade orgânica para parar o automatismo. É assim uma tarde em Estugarda, mas podia ser em qualquer outro lugar. Existem janelas verdes e olhos que espiam em qualquer nome de uma tabuleta. As maçãs que caem do céu são verdes também, amargas como a vida, perecíveis como a frágil realidade. A metafísica tornou-se ridícula, uma falsa questão. O quadro não está acabado, estou apenas a olhar para a tela, ainda não o comecei. Rega-se a lógica com um pouco de loucura, que mal fará? Rothko Rothko Rothko. De quanta escuridão dispõe este mundo? A luz bate-me de frente na cara, encadeia-me. Encontro-me num estado de sublimação tão iluminado que mal consigo ver. Um candeeiro de metal frio, flores para os pobres, um banco de jardim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

 Cadeira no topo da sala, dados vermelhos rolam, Chopin toca ao fundo. Não é desta e não será da próxima, absolutos não se fazem em fragmentos, não se produzem em momentos. Do alto olha um homem barbudo - chamam-lhe "Jesus" -, não o conheço. Corro para o passado com medo de um futuro que já conheço. Os ponteiros rodopiam freneticamente como roldanas desgovernadas e nada os pode parar. Sento-me na cadeira e olho impotente. Descarrego, ejaculo, penso, idealizo. Mais uma vez os ideais, obsessão irracional (encontrar explicação assim que possível). Os números, as adições, as subtracções, as raras divisões e as inocentes multiplicações. O telefone toca toca toca toca toca toca... ninguém atende. O amanhã é agora, hoje. O ontem nunca o foi, não tenho memória de tal.  Ler, escrever, pensar. Pensar pensar pensar pensar - pensar é bom. O drapejar da bandeira, a toada do mar, o sangue a escorrer. A figura antropomórfica olha-me lá do alto cada vez com mais desconfiança e desaprovação - curiosamente, nada faz. Observa-me apenas na cadeira. Estou sentado, calmo. Analiso, intelectualizo, problematizo. Nada de surpreendente na verdade, apenas a visão de um moribundo consciente da corrente inconsciência.