terça-feira, 9 de outubro de 2012


 Noutro dia sentei-me (estava de pé) - podia estar deitado -, sentei-me e pensei. Pensei na chuva, nas rosas murchas e nos beijos vermelhos perdidos. Disparei na direcção contrária e fiz da minha escolha arbitrária. Fui do contra, sempre fui, sempre sou (às vezes inconveniente). Mas é assim, um velho sentado no sofá, na poltrona, a olhar pela janela. Já conquistei o mundo. Agora sonho, sentado na poltrona, pregado à parede. Sacrifiquei-me pelos meus pares, fui sacrificado pelos meus pares. Nada me deram em troca - também não lhes dei grande coisa eu próprio. Que havia de dar? Não tenho nada e mesmo que tivesse, não tinha.
Disse noutro dia ao Mário que nada disto fazia sentido, que era absurdo e ridículo. Ele não fez caso, disse-me para beber mais um copo. Assim fiz. As tardes agora são longas, não voltámos a falar sobre isso.
Os carros passam em frente de mim e fazem barulho ao percorrer o asfalto molhado. Cheira a Inverno. Aqui em Amesterdão as tardes de Inverno estão envoltas num marasmo quase inexplicável. E depois as dialécticas no jardim. As conversas à sombra do choupo. (Não falamos de nada, a verdade é essa, mas é agradável.)
Eu até nem me importo (muito) de ser ignorante - toda a gente tem as suas limitações.
A minha mãe gostava que eu tivesse sido médico, uma profissão a sério, daquelas que dão dinheiro e tudo!, mas sou poeta. Será que sou? Sei que o dinheiro mal me chega para as despesas, por isso, se não sou, ao menos já estou mais perto. Mas não interessa, ser poeta nem sempre é escrever. Aliás, é, na maior parte das vezes, pensar. Viajar com a mente e sonhar. (Por vezes até é ser médico, talvez até ter uma profissão a sério. Mas tudo isto apenas com a mente, a sonhar, claro.)
A vida em Lisboa é calma, feita de tertúlias com amigos, de bicas na esplanada... A casa é pequena mas dá para mim, vivo sozinho e desarrumado, gosto assim.
Uma vez fui a Barcelona, trabalhava num bar, e, por vezes, até tinha amigos. Outra vez estive num templo no Tibete, a vida, toda ela, era calma e serenidade, elevação e sabedoria. Mas isso foram outras vidas que nunca existiram, ou se existiram, não me lembro. A minha cabeça já não é como era no antes. Do antes lembro-me cada vez menos.
A morte não é boa nem má, nem poderia ser qualquer uma das coisas, pelo menos para quem morre. Mas a verdade é que gostava de ter mais tempo. Não sei para quê, essa é a verdade, mas gostava. Pronto, depois não há nada. É difícil, ou impossível - pelos menos quase - imaginar a não-existência. É estranho ser e pensar no oposto.
Bem, mas nada disto servirá do que quer que seja depois da morte. Quem sou eu para discutir este tipo de assuntos? Sou apenas um poeta, não tenho esse direito, mas a verdade é que algumas imprudências são permitidas a um velho.
Claro que a morte é má, ou não, e mesmo que o seja é-o apenas de maneira negativa, por oposição ao que havia antes. E quando a senhora chega, todas estas preocupações desaparecem.
Nem Lisboa, nem Amesterdão, nem Barcelona nem Tibete. Talvez até, nem eu.
É isto, estou cansado e não tenho paciência para nada, estou velho (acho que é isso que os velhos fazem). O mundo não foi feito para pensadores. Os ignorantes conseguem ser muito mais felizes. Mas de que vale isso, a "Felicidade"? Toda ela de sorriso estampado no rosto e toda bem-disposta a cumprimentar as pessoas pela manhã.
- Olá!
- Bom dia Felicidade. Como está?
- Feliz! (Ora pois.)
E é sempre assim, sempre isto. Nuns dias aparece para me cumprimentar, noutros nem por isso. Será que sinto mesmo falta dela? Será que existe ou que tenho sonhado nuns dias mais do que em outros? (A verdade é que ela sempre me pareceu demasiado feliz, a Felicidade. E sendo eu um céptico, talvez deva desconfiar...)
Mas as folhas do Outono já caem, molhadas, no chão. Castanhas, amareladas, com aquelas cores de folha no Outono. E o jardim está vazio. Em frente ao velho edifício de pedra não há ninguém. Será que sou realmente velho? Tenho barba branca, estou cansado, já vivi uns quantos anos, muitos anos, que na verdade são poucos - pelo menos para mim. Mas será que sou velho? Posso estar apenas a ter uma crise de fatalidade.

Não sei, adormeci no banco do jardim. O sol primaveril aquece-me o rosto. Vou para casa.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012


E depois olhamos para os velhos, olhamos para a morte, é só mais um reflexo, um reflexo no espelho, um reflexo nosso, um reflexo próximo, só somos isso, o reflexo no espelho, só somos os velhos, só somos a morte, apodrecemos prematuramente, no caixão, sem nunca ter saído dele, sem nunca ter entrado, debaixo da terra, subterrados, deixados ali, sozinhos, mortos, a olhar para o espelho, para o espelho que não existe, para os velhos que são outros, que estão ali, mas que somos nós, que estamos aqui, não somos o futuro, nunca fomos passado, não somos nada de concretizado, e ficamos ali a apodrecer, em decomposição, ficamos sós debaixo do chão, falamos sozinhos, pensamos sozinhos sem nunca pensar, sem nunca estar sozinhos, sem nunca amar e sem vizinhos, ficamos na cova sem nunca para lá ter tido os pés, nascemos na cova como que in medias res, escutamos o que os outros dizem sem nunca que eles tenham dito nada, sem que nunca tenham existido, mas ouvimos o que dizem, pensamos, escrevemos, falamos calados, escrevemos deitados e sem mãos, com a mente, sem cérebro, não somos nada sendo a única coisa que existe, a única coisa que subsiste, um arremedo de ente que resiste, dentro do caixão, sozinho, esquecido, cheirando a morte, cheirando a podre, e o espelho não se move, fica apenas ali, a reflectir, e nós ficamos aqui a olhar para o reflexo, sós e de dentro do caixão, e tudo à volta cai e tudo isto foi um sonho, e nada disto existiu, talvez nem o pensamento, talvez nem Descartes, e tudo foi em vão, infrutífero, mas é assim que somos, talvez sem caixão, talvez sem terra, definitivamente sem chão, metafisicamente inexplicáveis, inexistentes, inadaptados, ineptos e inaptos, irracionais e mentecaptos, e vamos para aqui e vimos dali e vemos Dali, e nunca fomos a lado nenhum, nunca vimos nada, somos senão uma fachada, fechada, encerrada tal como o caixão de onde nunca saímos, nem para ir aqui, nem para vir dali, nem para ver Dali, e tudo isto é surreal, é surrealista, é irreal e irrealista, uma realidade que muda, transformista, sem objectivo, sem conquista, e escrevo tudo isto do caixão, sem nunca sair, o Sol lá fora queima e arranca-me pedaços, pedaços de mim, que nunca tive, que nunca hei-de ter, que já tive mas que agora se decompõem, lentamente, até que a morte chegue, mas já estou dentro do caixão, já estou morto, não quero sair, e faço força para o abrir, o caixão, para sair do chão, quero ir embora, partir agora, não olhar para o espelho e tê-lo sempre em mira, é o espelho, é o caixão, é o chão, são os velhos, e sou eu aqui a apodrecer, a escrever, a olhar para o espelho, velho, no caixão, sem noção do que será levitar, sair do chão, voar e ver tão lúgubre cena, ver do alto, o mórbido visto do céu, o fúnebre reduzido a borrões, manchas no solo e nunca dele saí.

terça-feira, 28 de agosto de 2012



Primavera eterna,
O desabrochar em gomos.
Gomos de jovialidade, de amor.

Estamos no topo.
No topo do monte,
Da vida,
No pico da alma.

O carborar dos corpos,
A imolação das almas,
As cinzas da vergonha,
Encharcadas em sexo.

E o sexo banha tudo,
E tudo é banhado por sexo.
Banho-me em ti, nado,
Afogo-me no teu sexo.

A vida emana dos entes.
Entes jovens,
Entes puros,
Entes eternos.

Somos o agora,
O agora no amanhã.
A vida neste segundo,
O infinito no momento.

O pecado.
O pecado original,
Em forma de sorriso.
O ventre de uma mulher.

Um jogo a dois,
Uma competição lasciva.
Hedonismo, e boémia,
Liberdade e paixão.

Somos um tango,
Um tango escaldante e apaixonado,
Um tango eterno.

quarta-feira, 6 de junho de 2012



Mentiste que não me amavas mais, como se fosse possível deixar de amar alguém. Fingiste que não me reconhecias, como se os traços do meu rosto se apagassem do teu. Chamei-te pelo nome. Não olhaste, como se a música da minha voz não te tivesse embalado tantas noites. As minhas palavras foram-te estranhas, como se fosse possível não saberes cada verso dos meus poemas. Desviaste o olhar do meu e procuraste as pedras da calçada, como se o teu infinito não tivesse neles habitado.Foste embora e não olhaste para trás. Foste embora e não quiseste olhar para trás.

(Olhei-te nos olhos depois de ter estado dentro de ti. Fizemos sexo outra vez, sexo fortuito, fugaz, proibido. Amamo-nos durante horas, voltamos a habitar a alma, o corpo um do outro. Um só, mais uma vez.)

Se te amo? Não sejas tonta, sabes bem que sim. És tudo o que quero, mas o meu tesouro a outro dono pertence. Não, não me esqueci de ti nunca. Sim, também tenho saudades tuas. Também eu devo vassalagem a outrem, tal como tu. Pois, mas são os caminhos que escolhemos. São os caminhos que escolheste. Pois, agora é tarde. Adeus.

Mentiste que não me amavas mais, como se fosse possível deixar de amar alguém. Fingiste que não me reconhecias, como se os traços do meu rosto se apagassem do teu. Chamei-te pelo nome. Não olhaste, como se a música da minha voz não te tivesse embalado tantas noites. As minhas palavras foram-te estranhas, como se fosse possível não saberes cada verso dos meus poemas. Desviaste o olhar do meu e procuraste as pedras da calçada, como se o teu infinito não tivesse neles habitado. Foste embora e não olhaste para trás. Foste embora e não quiseste olhar para trás.

quarta-feira, 30 de maio de 2012


E de rompante o som metálico do isqueiro de marca Zippo a abrir. E floresce uma chama na noite, uma chama que incendeia o pano branco liberdade que pende da garrafa. Apesar de não ser barman aquele homem segura um cocktail na mão. Molotov é o seu nome. Pode ser mais inebriante que qualquer outra bebida de teor alcoólico, excitar mais multidões que qualquer chuva de cerveja.
 E assim, de súbito o objecto com nome de bebida - mas decerto desaconselhável para ingestão - percorre os ares do Rossio e sibila em direcção ao seu alvo, reclamando por menos impostos, reclamando por mais pão para a boca dos pobres, reclamando por uma vida mais justa, ou não reclamando por nada.
 Ricardo encontra-se entrincheirado por detrás do muro de escudos daquele plástico duro - ao qual os mais pretensiosos se referem como "policarbonato" -, o equipamento de protecção pesado fá-lo suar e a viseira do capacete turva-lhe a visão.
 Ricardo, de olhar perdido e totalmente alheio ao que se passa na Praça D. Pedro IV, relembra aquele dia quente de Verão em que atrás do velho celeiro encontrou um homem crivado de balas.
 O Sol ia já bem alto, quando Ricardo, 11 anos, cabelo loiro, olhos azuis, jardineiras rasgadas nos joelhos, t-shirt vermelha e boné coçado, saiu de casa para ir ter com o Pedro, um miúdo franzino e com um ar - considerariam alguns - um pouco tísico, lá da aldeia, com o qual mandava pedras aos ninhos das árvores e companheiro de tantos roubos de maçãs na banca do Senhor Joaquim. Maçãs, laranjas, pêras... Por alguma razão que o mesmo - e até eu, o próprio narrador - desconhecemos até à data, algo o impeliu a tomar o caminho que assomava perto da anciã azinheira, subindo o cabeço e passando pelo velho celeiro abandonado no vale, em vez do habitual caminho de terra batida, onde tantas vezes tinha esfolado os joelhos em tropelias ciclísticas com o mesmo Pedro cuja casa ficava no final da estrada, depois da casa da Rosalina e do velho Abílio.
 Ao descer o vale, e aproximando-se daquele aglomerado de madeira que de tantas toneladas tinha sido albergue - mas que agora ameaçava ruir a qualquer momento fustigado pelas térmitas e outros os males que afectam a madeira -, sentiu um cheiro pútrido que lhe subia as narinas como se de um foguetão se tratasse, e que lhe bateu na cara tal qual soco de pedra.
 Pedro, movido por um desejo mórbido de descortinar a proveniência daquele trovão olfactivo, e tal qual perdigueiro em buscar da presa, dirigiu-se para trás do velho e cansado barracão, para trás do celeiro, o celeiro da morte. E ali estava ele, um homem crivado de buracos de bala que tinham apenas competição à altura por parte das varejeiras que rapinavam a carne podre.
 E ali estava ele, o "Cobras" como era conhecido pelos poucos que lhe distinguiam as feições, e cuja alcunha assentava que nem uma luva devido ao facto do "Cobras" ser mau como as mesmas, a meditar - mas pouco - olhando para o céu de olhos arregalados como se um dilúvio de proporções bíblicas fosse fazer chover algo ridiculamente inusitado, como projecteis de chumbo - a verdade é que as balas apareceram de algum lado, de onde ao certo, ninguém sabe. Estava morto. E bem morto por sinal, tão morto quanto possível.
 Pedro fugiu a gritar entre choros e soluços, ao tropeção por entre as giestas e os cardos e o centeio selvagem perdido pelo trilho e ali deixou o Cobras de olhos arregalados e expressão surpresa - por esta não esperavas tu ó fuinha! Apanharam-te, não com as calças na mão, mas a correr pela vida e a ver se não te caía o chapéu de palha. (Mas aqui para nós. Quem é que se preocupa com um chapéu de palha enquanto é perseguido por um grupo de homens de aspecto duvidoso munidos de armas de fogo? Vá se lá entender...) -, sozinho e com o estúpido chapéu de palha caído ao seu lado. O revólver que tinha à cintura se de entalhes fosse munido, pareceria um reco-reco, tantas eram as vidas que já tinha ceifado.
 Cobras era o que se pode chamar, um assistente da morte, um assassino por contrato. Cobras matava porque lhe pagavam, para ele era razão suficiente, ironicamente foi-o para os seus carrascos também...

quarta-feira, 9 de maio de 2012


Amotinei-me, revoltei-me, saí à rua. Levava em mim um ódio bárbaro a tudo e a todos, ao instituído e ao inovador. Revoltei-me com o passado e com o futuro, e o meu presente tanto ardia em revolta. Tomado por esta vontade de subversão, por toda esta revolução interior. (Fosse lá saber-se porquê, mas tinha em mim esta cascata de sentimentos, esta que desembocava num mar revoltoso.) Saí, olhei para todo o lado com a fúria no olhar, tudo isto tinha de sofrer uma mudança, uma mudança profunda. A sociedade não voltaria a ser a mesma - pelo menos nos moldes em que a conhecemos. Andei, andei pelas ruas da cidade determinado, imutável, amotinado. Ia montar uma barricada de intelectualidade e atirar um pouco de bruta violência física para a fogueira também. 


E assim, decidido e resoluto!...


Voltei para casa, o tempo não está para revoluções. Tenho a carteira vazia e ainda por cima as nuvens ameaçam chover-me em cima. Talvez noutro dia... Agora tenho preguiça.

segunda-feira, 9 de abril de 2012


Não sei quem quero ser. O poeta é parco nos vaticínios. É assim que deve ser. Ele não tem objectivos definidos, gostos vincados, interesses idiossincráticos... És nómada no pensamento, nómada nos amores, nómada nas acções, nos gestos, nos pensamentos. Nómada. Não vives em lugar definido e não queres amarras, não tens porto. Sois nau que navega à vista, que cruza os mares sem destino. São conquistadores, messias sem seguidores, são peregrinos eternos e etéreos. Somos deuses, somos o topo. São demónios, são o fundo. O futuro é vago em promessas, o mistério a descortinar, o enigma sem importância. És mais uma aranha no emaranhado da teia, desta grande teia. Os fios entrecruzam-se. Para que ponta me encaminho? Sou ermita, sou nómada, sou poeta, sou nau, sou conquistador, sou messias, sou peregrino, sou deus, sou demónio. Sou a aranha que arquitecta esta grande teia. Sou o criador, e ainda tenho o tinteiro bem cheio e a pena bem afiada.

quarta-feira, 4 de abril de 2012


A cidade estava deserta. Nas ruas ouvia-se o silêncio mais puro, que sussurrava em todas as esquinas e por entre os edifícios. O sibilar da solidão propagava-se por toda a natureza morta que compunha a cidade, uma selva urbana de cinzentos, vermelhos e ocres. Tudo era puramente funcional, o racionalismo em forma arquitectónica. Grandes fachadas envidraçadas olhavam o silêncio de cima, contemplavam aquele vazio ridículo - diga-se com sinceridade que as grandes metrópoles sem ninguém teriam um aspecto despropositado e sobejamente ridículo. O Sol batia os muros de maneira enviesada, a obliquidade da luz dava uma certa beleza ao betão e transmitia uma serenidade de fim de tarde de Verão.

Ele acordou, desceu ao plano onde este aglomerado morto se encontrava e contemplou. Contemplou a vastidão do vácuo humano que se lhe apresentava. Parou durante uns segundos e ficou a perscrutar aquela cidade de aspecto tão modernista - vazia. Caminhou pelas ruas, subiu aos muros, inspeccionou as esquinas. Estava sozinho, tinha a certeza. Onde teria ido toda a gente? Que estranho fenómeno teria eclipsado todos aqueles entes? Cada movimento, cada respiração, cada passada ecoava por toda a eternidade de betão. Pensou que talvez se tratasse de um sonho. Tentou acordar. Não conseguiu. Estava genuinamente sozinho.
A solidão era agridoce e veiculava sentimentos mistos e contrastantes. Todo aquele vazio transmitia uma calma nunca antes sentida, aquele silêncio agradava-o, permitia-lhe ouvir os seus pensamentos com clareza, os seus sentidos pareciam mais aguçados... Mas também era fria. E toda a gente sabe que nós - raça humana - gostamos de calor.


Deitou-se no cimento morno e olhou para o céu onde o sol o encandeava, fechou os olhos e adormeceu.

quarta-feira, 14 de março de 2012







O mar
                                                                                                                 Gaivotas




                As nuvens


                                                                           Brancas






                                      Tu


                                                                              Eu                                          O som




          O cheiro
                                                       Luz


                                                                                        Paz


                                                                                                                         Placidez
              Tu outra vez


                                                      O teu vestido branco
                                                                                                                           Voas


           Flutuas no plano do infinito
                                                                                O momento


                                                                                                                                        Uma imagem fixa


                     Presa na mente


                                                                          Porquê a fixação?


Porquê Tu?                                           
                                    Porquê a luz?                                                            Porquê o mar?


                                                                             Porquê o som?
  Porquê as gaivotas?                       
                                                                                                                               Porquê o branco?
                                                    Talvez a saudade...


A saudade da tua paz
                                                                                               Da tua placidez
                          Não tua, minha


                                                                                                   És mulher


                                                                                                                       Apologia feminina


                                                                       És a fonte
  O Sonho


                                                Deusa divina
                                                                                       Perfeição sem falhas                                                                                                             


                       És a imagem de um paraíso terreno, pelo qual não temeria morrer.
                                                                






                                                                        Amo-te.

domingo, 4 de março de 2012



Porque me deixas aqui sozinho à chuva? 
Porque não me convidas a entrar e me aqueces?
Não sabes que está frio cá fora e que a chuva gélida me congela a alma?
Preciso do calor do teu regaço.


Convida-me a entrar.
Prometo ser um bom inquilino,
Habitar o teu corpo, viver na tua alma.
Porque me deixas sozinho cá fora?


Pudesse eu ter-te cá fora e todo o frio desapareceria.
Pudesse eu ter-te aqui e as gotas evaporar-se-iam no mesmo instante.
Vem, junta-te a mim cá fora.
Não sabes que eu preciso de ti?


E é a gota aterradora da saudade que me corre espinha abaixo
E o tenebroso arrepio da solidão que a assoma.
A chuva cai, e eu caio também.
Segura-me.


Não sabes que te amo?
Não sabes que revolvo em torno de ti?
Não sabes o quanto te amo?
Porque me deixas cá fora sozinho à chuva?

quinta-feira, 1 de março de 2012



Pontos,
Pontos e carros em passagem.
Pontos que se entre-cruzam.

São pontos.

Somos os pontos,
Os pontos e os carros.
Estrelas migrantes, 
Pontos de luz.

Aqui ninguém tem futuro,
São apenas pontos.
Não há problema,
O amanhã não existe.



Pontos feitos de pontos,
Pontos mais pequenos,

De tecido pontilhado,
Pontos infinitamente pequenos.


Astros com luz,
Luz própria.
A iluminação deste espectáculo

Onde nada é nada, 
Onde tudo é apenas nada
E onde o nada é composto por tudo.


Universos fechados dentro da sua realidade,
Ignorando os outros universos fechados
Que se ignoram mutuamente formando Universos.
Universos infinitos e apenas constituintes.


E aqui estou eu,
Um nada sendo tudo,
Um ponto de luz neste universo que sou eu
E que não é nada.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012





Ele era Homem
E o Sol nascia ao fundo.

Ele era Homem
E aquela bucólica calma tomava-o.


Ele era Homem,
A vida era simples.
Ele era Homem
E a vida era só.


Ele era Homem,
Trabalhava no campo,
Era Homem
E a placidez tomava-o.


A vida eterna era aquela,
A simples, a de Homem.
E toda a planície reverberava
Discreta e despercebidamente.


As mãos fortes e calejadas,
As mãos inocentes do campo.
Tudo fazia parte do mecanismo
Do eterno relógio.


Os dias eram felizes.
A luz dos vales sôbola infinita.
Os banhos tomavam-se sobejamente,

Aqueles, os de luz.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012





Nestes versos que aqui escrevo 
Ponho a vida como a conheço 
Ponho a vida, morro e mato. 
É uma languidez que me chega com o pensamento. 

Mas de olhos abertos, agora lúcido 
Não me espanto com o imprevisível 
É-me tão familiar como a morte 
Tão próximo como a vida. 

E toda esta dança 
Todo este bailado complexo 
Esta sinfonia labiríntica
Este latejar certo, obsessivo. 


O tempo bate ao tempo certo. 
As horas irremediavelmente vãs, 
O futuro indubitavelmente certo,  
A morte irrefutavelmente garantida. 


O decadentismo do pensar, 
A fatalidade do saber. 
Corro sem fugir, 
Caio a flutuar. 


E neste mar de mim, 
Nesta imensidão de nós, 
Tudo é vago e efémero, 
Tudo é concreto e infinito. 

E nestas voltas que não são nada, 
Também pouco faço.  
Tento antecipar a próxima volta 
Mas já a conheço de cor.  


 E já lhe conheço a cor. 
Viva e veemente. 
Mas ao pintar o que vejo, 
Apenas um borrão.  


O esguicho visceral de tinta. 
O liricísmo deste abstracto,  
Sem a beleza da Kandinsky, 
Com a emoção de van Gogh. 


Soubesse eu pensar Pessoa e escrever Hélder. 
De nada serviria. 
Continuaria o profeta, que de olhos abertos vaticina sem saber o futuro.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012



Nós governamos o mundo. Somos omnipotentes e omnipresentes. Estamos em todo o lado e o nosso poder é ilimitado. Artifícios infinitos, recursos intermináveis. Fugimos, corremos sem olhar para trás - perseguidos. Os nosso actos são calculados nanomilimétricamente e têm objectivo bem definido, alvo designado. Desviamo-nos das balas, balas essas às quais tantas vezes demos o corpo. Somos inconsequentes e desestruturados, não temos pés nem cabeça - andamos e pensamos no entanto. As nossas mãos calejadas da pena, sujas da tinta, suadas da emoção são o futuro do mundo - e tantas previsões fazem. Os vaticínios, as profecias - todas elas já passadas - acumulam-se em cima da nossa mesa de trabalho. Somos messias sem rosto, os mais ilustres e importantes desconhecidos, as sombras na engrenagem da humanidade, os bastidores da metafísica. E para onde havemos nós de ir? O que havemos de fazer? Somos só isto, só isto e nada mais. Lá fora está frio e a previsão meteorológica não oferece esperança de melhora. Chuva para toda a eternidade - talvez nem isso. E aqui estamos nós, homens do tempo, humildes e incógnitos. Poetas. Poetas esquecidos... Ou melhor, nunca lembrados. Mas que importa? O óleo é sempre o elemento mais sujo da máquina. Põe-se um aqui problema, apesar de desprezível, sem óleo a máquina emperra.



Sim, amanhã vai chover.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012



Pira fúnebre.
O cheiro a carne queimada,
Fumo negro.
Os corpos ardem noite fora.


Há muito se perdeu a conta.
A conta de quantos são,

De quantos ardem naquela pilha de morte.
Os corpos ardem noite dentro.

Ninguém os carregou até ali,
Caminharam todos de livre vontade até aquele mórbido local,
Caminharam numa bicha interminável.
Os corpos iluminam a noite.

Não nós preocupemos com luz,
A gordura imunda e decadente é círio.
E quanto mais gordos e atrofiados, mais fogo emanam.
Os corpos conspurcam o ar da noite.

Foi para este momento que engordaram toda a vida,

Para esta pira lúgubre,
Este amontoado triste, fatal, final.

Os corpos arderão até de manhã.

O Sol não nascerá...



terça-feira, 10 de janeiro de 2012



Hoje não há tempo para fatalismos.
Tempo não o há para filosofias já mortas.
Estou cansado, quero dormir.

Fecho os olhos e uma corrente de metafísica,
Fecho os olhos e morro.
Morro apenas para viver amanhã.
É um ciclo, e nada pára a engrenagem.

A água corre e move o moinho.
E o moinho mói...
Mói-me a alma, mói-me o ser,
Mói-me a vida.

Mas isso é hoje.
Vou dormir,
Morrer.
Mas só para viver o próximo dia.

domingo, 8 de janeiro de 2012



A cobardia na estoicidade.
O medo da forma, mas não do conteúdo.

A consciência do fim,
A inocência do mesmo.

Um "Vê lá se és fulminado por um raio...".
Tom profético e irónico,
Revestido de ameaça.
Uma morte anunciada por um profeta de segunda.

O Pensador e o seu papel.
Um actor sem falas, um figurante.
Talvez um espectador,
Quiçá o encenador.

São perigosas estas comparações.
É suposto existir um poço deontológico.
Um poço entre deuses e homens,
Entre o perecível e o eterno.

Jornadas que nunca acabam,
Mas que nunca levam a lado algum.
O topo da montanha é a sua base.
Vivemos do ciclo.

Se olharmos para cima talvez vejamos os nossos pés,
Vemo-nos a olhar para cima,
Para os nossos pés,
Para cima.

Não sou a mais ínfima matéria.
Podia lançar-me com toda a inércia da minha massa.
Lançar-me contra a metafísica, que nada aconteceria.
A minha existência é ridícula, insignificante, sem sentido.

Sou fatalidade.

Sou o Homem.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012



Essas pernas de fada.
Essas pernas de pecado.
Essas pernas de infâmia.
A perdição, no seu essencial...


Perco-me em ti,
Perco-me nas tuas pernas,
Perco-me no teu sexo.
O fim último de tudo.


És o Sol quando nasce,
És o Sol que aquece,
És o Sol quando se põe,
E em toda a tua magnificência, explodes.


Explodes-me à queima-roupa,
Explodes-me com esse decote,
Explodes-me com... ai essas pernas...
Divindade em forma de Diabo.


Encontro-te à noite,
Encontro-te de dia;
Encontro-te à tarde.
E muito de mim em ti conheço.


Pulsões ocultas,
Pulsões eróticas,
Pulsões obsessivas.
E todo o sexo és tu, e toda tu és sexo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012


Um copo com um tilintar gelado
Vai e vem, vai e vem...
E eu aqui sentado
De copo na mão.

Já fui eterno na efemeridade,
A efemeridade ridícula de tudo o que é.
A existência.
O todo.

Mas coloco-me agora no epicentro da mancha laranja,
Escrevo relembrando o passado,
Escrevo adivinhando o futuro,
Não sou nada.


O gelo derrete no copo.
O martini adoça-me a boca,
Adoça-me a vida.
O gelo derrete como eu.

O degelo perante o impotente contemplar
Dos olhos humanos,
Da centelha da vida.
O frio, a liquefação, o fim.