olhando o espelho na sala de
cortinados veludo carmim. tu estás na cama. por baixo do espelho - como sempre
estiveste. vejo-te dentro do espelho. numa outra dimensão de mim. nua. as
janelas alcançam toda a fachada casca de kiwi. há algo de tropical no quarto.
lá fora. uma selva estende-se em toda a extenuante extensão - não da paisagem -
do quarto, da paisagem do espelho. vejo as rugas nojentas que brilham em
vibrante ondulação gordurenta. tenho a barba demasiado grande. maltratada como
um jardim esquecido. seco. abandonado. entregue à natureza. à do homem. não
muito diferente da seara mal plantada - e francamente seca - entre as tuas
pernas. estou despido da cintura para cima. a carne em gomos de pêssego
doce. pêssego maduro. existe algo de tropical no ar mercúrio que nos rodeia.
está calor e os teus poros de sereia expulsam todo o podre amadurecimento
feminino. é nojento. é sexual e mesmerizante. toda a tua pele
amadurecida em casca de carvalho clama pela perigosamente venenosa língua do
poeta narciso. mas agora não posso, estou a hipnotizar o espelho. ou ele a mim.
qual deles sou eu? o de lá... o de cá... o de lá. o observador mais distraído
poderia pensar que sou os dois. mas não se pode ser os dois. apenas um. no
entanto ali estão dois. sinto o chão em sangue com os pés descalços. é
quente - talvez revigorante. o chão é sangue porque eu o piso. eu sou eu
porque piso o sangue. tal como o espelho. somos os dois um. não são dois. são
um. o quarto todo escorre para o chão. para o espelho. para mim. do meu espelho
consigo ver o mundo. está húmido (o ar). está calor. é nojento. como suor na
pele de um velho. um velho porco que se esfrega em crianças. é o padre da
paróquia . está apenas a mostrar-lhes os desígnios de um senhor. transpiro
em bica. vejo o suor escorrer-me espelho abaixo. toca um jazz obsceno de
fundo. oriental. com um toque de Bali. as flautas fazem-me estremecer. e o
corpo vibra na espuma das ondas. das ondas do mar de sangue. imóvel. fito o
espelho. fito-me. sou eu? continuas na cama. alheia a tudo o que se
passa no espelho. como podes estar alheia ao que se passa no espelho?
dormes. dormes no teu sono de infante. regressão completa à pudicícia infância.
toda tu cândida. e eu no espelho. preso no espelho. estamos numa casa senhorial
branca. no meio da selva. daquelas. coloniais. é branca. contrasta com os secos
da selva. é branca. também tu és branca. mas só por dentro. pele
exótica. da selva. não da casa branca. da selva. pantera negra. ardilosa.
esguia. esbelta. porte predatorial. predatório. pré datório. estás suspensa na
cama. o tempo escorre por baixo. com o sangue. todo o tempo é sangue.
todo o sangue é tempo. e escorre. escorre... escorre... escorre...
/do meu espelho consigo ver o mundo./