quarta-feira, 5 de junho de 2013





olhando o espelho na sala de cortinados veludo carmim. tu estás na cama. por baixo do espelho - como sempre estiveste. vejo-te dentro do espelho. numa outra dimensão de mim. nua. as janelas alcançam toda a fachada casca de kiwi. há algo de tropical no quarto. lá fora. uma selva estende-se em toda a extenuante extensão - não da paisagem - do quarto, da paisagem do espelho. vejo as rugas nojentas que brilham em vibrante ondulação gordurenta. tenho a barba demasiado grande. maltratada como um jardim esquecido. seco. abandonado. entregue à natureza. à do homem. não muito diferente da seara mal plantada - e francamente seca - entre as tuas pernas. estou despido da cintura para cima. a carne em gomos de pêssego doce. pêssego maduro. existe algo de tropical no ar mercúrio que nos rodeia. está calor e os teus poros de sereia expulsam todo o podre amadurecimento feminino. é nojento. é sexual e mesmerizante. toda a tua pele amadurecida em casca de carvalho clama pela perigosamente venenosa língua do poeta narciso. mas agora não posso, estou a hipnotizar o espelho. ou ele a mim. qual deles sou eu? o de lá... o de cá... o de lá. o observador mais distraído poderia pensar que sou os dois. mas não se pode ser os dois. apenas um. no entanto ali estão dois. sinto o chão em sangue com os pés descalços. é quente - talvez revigorante. o chão é sangue porque eu o piso. eu sou eu porque piso o sangue. tal como o espelho. somos os dois um. não são dois. são um. o quarto todo escorre para o chão. para o espelho. para mim. do meu espelho consigo ver o mundo. está húmido (o ar). está calor. é nojento. como suor na pele de um velho. um velho porco que se esfrega em crianças. é o padre da paróquia . está apenas a mostrar-lhes os desígnios de um senhor. transpiro em bica. vejo o suor escorrer-me espelho abaixo. toca um jazz obsceno de fundo. oriental. com um toque de Bali. as flautas fazem-me estremecer. e o corpo vibra na espuma das ondas. das ondas do mar de sangue. imóvel. fito o espelho. fito-me. sou eu? continuas na cama. alheia a tudo o que se passa no espelho. como podes estar alheia ao que se passa no espelho? dormes. dormes no teu sono de infante. regressão completa à pudicícia infância. toda tu cândida. e eu no espelho. preso no espelho. estamos numa casa senhorial branca. no meio da selva. daquelas. coloniais. é branca. contrasta com os secos da selva. é branca. também tu és branca. mas só por dentro. pele exótica. da selva. não da casa branca. da selva. pantera negra. ardilosa. esguia. esbelta. porte predatorial. predatório. pré datório. estás suspensa na cama. o tempo escorre por baixo. com o sangue. todo o tempo é sangue. todo o sangue é tempo. e escorre. escorre... escorre... escorre...



/do meu espelho consigo ver o mundo./