terça-feira, 20 de dezembro de 2011


Tempo. A concepção de tempo. A concepção de tempo e as suas consequências. A concepção de tempo e as suas consequências, não as da concepção, mas as do tempo. Imagine-se um rio. Um rio largo e profundo que corre sempre para a foz, um rio cujo fluxo contínuo nada pode parar. Os tic's precedem os tac's que precedem os tic's que precedem os tac's, e é sempre assim, sempre foi e sempre será. As escolhas que fazemos, aquelas pelas quais optamos a montante alteram o que acontece a jusante, quando optamos no tic, optámos o tac. E aqui estamos nós no preciso momento do orto, na génese de tudo. Imaginem-se agora as probabilidades infinitas, as multiplicações intermináveis, as derivações. Imaginem-se todas as escolhas, todas as esquerdas e direitas, todos os sim e todos os não, imagine-se. Todas as esquerdas e direitas, todos os sim, todos os não, tudo o que é acção, tudo o que acontece. As possibilidades são infinitas e não podemos rever todas as escolhas, somos filhos do acaso - literal e metaforicamente. A mais pequena acção, o mais pequeno atraso altera tudo o que irá ser. O mundo é esta grande mesa de jogo onde toda a humanidade e cada um dos indivíduos que a compõe lançam os dados, e no fim, soma-se tudo. Volta-se a atirar os dados, volta-se a jogar. A borboleta que bate asas somos todos nós. As dimensões paralelas suficientes para comportar todas as possibilidades do que poderia ser o agora seriam intermináveis. Vivemos num universo de infinito em todas as escalas, de todas as perspectivas e para todas as direcções. Somos o eco do acaso produzido pelas escolhas. Escolhas que não podem ser retomadas, que não podem ser alteradas e que noutra dimensão fazem de cada ser um ente total ou parcialmente diferente. As possibilidades foram, são e serão infinitas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


E que são essas coisas aí? São putas que dançam tangos. São entes que deambulam pela sala, seres que andam para cima e para baixo no bordel da vida. E não é isso que se quer? Boémia? Hedonismo? A negra verdade de perversão, a morte antropomórfica das putas. É isso que elas são, putas. Galdérias, meretrizes, pegas, rameiras. Mulheres. O circo de aberrações está na cidade e veio para ficar, os bilhetes são grátis e todos têm lugares na fila da frente. O espectáculo é pavoroso e horripilante, mas ninguém desvia o olhar por um segundo que seja. Gostamos destes rituais de morte, de toda esta obscuridade, do sangue a salpicar-nos as caras. Rimo-nos do cheiro a sangue, das nódoas de desgraça na indumentária alheia. E os passos de tango não cessam, a dança infernal de prazer hipnótico. E aqui estou em sentado na poltrona do bordel a ver as putas que dançam tangos e os seus movimentos provocatórios sem objectivo. E quem as pode julgar? É o seu trabalho, dançam, prostituem-se... Não é o que fazemos todos?

Um bom dia puritano de uma boca sorridente com um olhar caloroso e meigo, o olhar de um gato na floresta. Olhos rasgados, verdes. "Bom dia". Uma bela mulher vestida de branco. Nas suas costas, luz. Está sentada na beira do meu leito, parece tentar seduzir-me no meu momento mais vulnerável. As manhãs são calmas, dotadas de uma plenitude plácida. Da cama vejo o mar, vejo areia e as investidas constantes do mar, vejo-a a ela e o azul do oceano, a luz aquece-me e aquele ondular com cheiro a génese embala os meus ouvidos. Abro e fecho os olhos e ela sempre ali. Cabelo castanho, olhos verdes, trajada de luz. Entro e saio do sono e ela sempre ali. Profundidade mesmerizadora, semblante terno. E a vigília brinca comigo, domina-me em rasgos, adormeço, abro os olhos. E ela mais uma vez ali, a visão divina de perfeição. O mar entra-me no quarto com notas de sal, torna aquele momento puramente metafísico ainda mais sereno. Sinto-me num marasmo, todo o meu corpo coberto de torpor. Torpor puro, torpor de êxtase. Ela sorri, seduz-me a cada piscar de olhos. Nada acontece, fico ali apenas a ir e vir de um estado de aparente consciência - que de realidade tem pouco -, tomado por uma dormência de serenidade, luz e placidez. Toda a verdade existencial num delírio onírico tão verdadeiro como a vida, como o "Bom dia", como a manhã e as gaivotas, como a areia e o mar, como a luz e a perfeição. Não somos nada, não sou nada. Agora sou aquele momento, aquela placidez e luz, serenidade e perfeição. Sou aquele momento, nada mais. Placidez. Já referi a placidez? Já referi a perfeição e a luz? Sim, é isso, a placidez. Placidez, placidez, placidez...

domingo, 18 de dezembro de 2011


Dissertações. Dissertações infinitas sobre todos os tópicos - quase todos. O burburinho generalizado emana das portas, das janelas, ecoa nas ruas, alimenta nações. Toda a humanidade - sem excepção -, focou a sua existência para a reflectividade, atribuiu um "sentido" provisório à sua vida. Durante dias ninguém comeu, ninguém bebeu, ninguém foi trabalhar. Não morreram pessoas, não nasceram outras. A discussão era feita em todos os idiomas, era feita por sem-abrigo, por donas de casa, por políticos, filósofos, crianças, idosos, economistas, escritores, pessoas... Teses sobre os grandes males do mundo, sobre as problemáticas mais prementes. Discussões científicas, práticas, metafísicas. Atacavam-se problemas de todas as frentes, a discussão era o que unia o povo. Foram escritos biliões de ensaios por biliões de pessoas, debateram-se, ajustaram-se reescreveram-se. O mundo tinha parado, mas não de pensar. Pensar era agora uma necessidade, uma necessidade maior que comer, uma necessidade maior que beber. Gentes conversavam pelas ruas, em cafés, nas casas. Foi organizado um concílio com os maiores pensadores vivos daquele tempo - ter-se-iam convocado também os mortos, mas devido à lógica impossibilidade, não aconteceu. Os pensadores dedicaram-se ao exercício que melhor desenvolviam, fizeram-no de maneira ininterrupta, pensaram. Dialectizaram horas, dias, anos a fio. Toda esta imensidão de gente, de gentes, de povos. Todas as mentes capazes do planeta nada mais fizeram que pensar.


Não se chegou a conclusão alguma.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011


O sangue a esvair-se de um corpo ainda quente, ainda mole, ainda humano. Não haja ilusões, está morto. Fui eu que o matei. Nesta viela escura, lúgubre e fria, tudo está morto. A chuva escorre pelas paredes de tijolo dos prédios, segue o seu rumo, o seu rumo como o sangue. Ambos correm para a sarjeta, ambos escorrem para o esquecimento. Misturam-se numa alquimia fatalista, de pleno, de tudo. Alvejei-o à queima roupa e fiquei a ver a vida a escorrer com a água e com o sangue para fora do seu corpo e até à sarjeta. Nada mais existe agora, tudo está morto, esquecido. Não tenho uma razão especial para desprover este pobre ente de vida. Hoje acordei com este capricho, apeteceu-me. Estou ensopado, não só em chuva, em prazer, em energia eterna... Sou tomado por um êxtase de prazer, sou um deus preso no corpo de um homem, sou eterno. Todo o mundo parou, toda a concepção do mundano está congelada. A vida, a morte, a falta de sentido da vida. Somos iguais, eu em pé, à chuva num êxtase de prazer divino, ele, desamparado com cheiro a morte com a chuva a escoar o resto do seu sangue. A vida e a morte a menos de três metros de distância, a discrepância de poder, de possibilidades, a igualdade do ridículo, do inocente. Toda a concepção do que é, do que foi, do que irá ser destruída e engolida por uma qualquer sarjeta, numa qualquer viela, numa qualquer cidade, num qualquer país, num qualquer mundo. Que mundo? O mundo não existe, não existe a realidade, o tempo. Ajeito o chapéu, aperto o casaco, vou para casa, afinal de contas é apenas mais uma terça-feira...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011


Tenho em mim os hábitos de outra pessoa, traços no rosto que não são meus. A minha mente é outra, longe daqui. As minhas roupas, o meu cabelo, a minha pele... Estão impregnados de um cheiro que não me pertence mas que já foi meu. Tenho os vícios do meu vício, os maneirismos de outrem, os hábitos de outros tempos. Quebram-se tradições, é disso que se trata, distanciar-se do que nos era instintivo. Vivo um outro alguém que vive em mim, que já partiu. O que eu sou é uma simbiose, uma metamorfose conjunta, uma crescimento uno de um par. Fomos crianças, mas a inocência há muito foi perdida, duas crianças quase adultas que cresceram juntas e agora bifurcam o seu caminho. Não consigo descascar esta pele, esfolar a alma desta carapaça alheia, lavar a réstia do toque, esquecer o som das palavras. Reproduzo o que foi em mil rasgos oníricos e memórias, tento sem sucesso sair daqui. A semântica dos sons atinge agora proporções meteóricas e sou atingido sem me conseguir defender. Comes-me por dentro, quando já saíste. É tão fácil confundir dois entes e tomá-los por um no momento de distracção lírico e inocente. A realidade não espera por ti rapaz, avançou e deixou-te ao sabor da tua própria solidão, nu neste mundo frio que fustiga as extremidades com ferocidade de besta. Peregrinemos então por caminhos diferentes, talvez no encontremos mais à frente no fado.


(Hoje é tudo o que consigo dar, tempos mais brilhantes virão, com a centelha da criação bem viva.)

domingo, 11 de dezembro de 2011


Acordo num campo de trigo no topo de um monte enquanto o sol nasce, não me lembro de nada. Uma simbiose entre o real e o onírico, um tudo salpicado de nadas. As árvores são violeta, o céu amarelo. Dentro da caixa de pandora, o comum dos mortais sobrevive não mais do que alguns vislumbres. A escuridão passa em gomos à velocidade da luz e trespassa qualquer corpo que esteja no seu caminho. Um guardião biónico guarda a entrada e acompanha quem por ali à noite passa, diz como sente, fala de grandes verdades dogmáticas sem importância alguma. O manifesto surrealista é declamado ao fundo por mil poetas pintores que cantam como anjos de Caravaggio. Giacometti esculpe os habitantes deste universo paralelamente perpendicular, as dimensões mesclam-se, não há perspectiva. É escuro, frio e assustador, não é para os fracos. Os fracos de alma, os fracos de espírito, nem tão pouco para os de fé. O vosso deus não vou preparou para o que aqui acontece e não detém qualquer poder aqui, é outro mero e ridículo ente. Sim, é esse o meu trabalho, ridicularizo divindades, religiões completas, ideologias sólidas. Concepções dentro de concepções, atravessadas por perspectivas labirínticas, vistas de ângulos mortos no topo de objectos impossíveis. Espirais de léxico, serras de palavras, núcleos de ideias. Pensamentos com pernas deambulam por todo o lado e amedrontam quem passa, aqui ninguém está seguro. Figuras amorfes e sinistras que apavoram os monstros do pior imaginável pesadelo. A minha mente...Buh!...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011


Um parque infantil deserto, ruas, carros, casas abandonadas... Uma terra de morte, a marca do homem. Quem mente tão brilhante... Por vezes brilhante demais. Perdemo-nos em extremismos, viramos as costas à democracia ao mínimo revés. Ditaduras por toda à parte. Somos facilmente manipuláveis nestas circunstâncias, ficamos cegos de desespero, tomados por um saudosismo irracional, regredimos. O capitalismo é um mal necessário, somos servos do fiduciário. O cancro do dinheiro espalha-se por toda à parte, somos materialistas, consumistas e tornamo-nos  chauvinistas. Temos memória curta e subvalorizamos liberdades, afinal são garantidas, não precisamos de nos preocupar. Entregamos a liberdade - iludidos - a lideres carismáticos, fortes e sensatos, tudólogos encartados e com diploma. Por favor!, poupem-me os falsos nacionalismos, estou farto de hipocrisias sujas e baratas. Sou tomado por uma enorme cefaleia. Será a misantropia a solução? Não sei, mas parece-me irónica a ideia de odiar algo a que pertencemos, mas por outro lado, não fui eu que pedi a integração e não posso fazer grande coisa para me apartar do mesmo. E foi este o inferno nuclear o presente que o extremismo bélico nos deixou. Ai está, apreciem o disforme espectáculo de morte que todos encenamos ou do qual somos culpados, pelo menos, como observadores. Que questiono eu? A própria humanidade é toda ela pintada de misantropia. É claro, está à vista, à superfície e no interior de tudo. Agora é tarde demais, Chronos nunca retrocede na sua vereda. E agora o que fica? Talvez tanto quanto existia... Pouco e sem sentido. Nações inteiras compostas apenas por cidades fantasmas, o rosto da morte colectiva no vazio.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


A jarra de flores, o prato de queijo e os guardanapos dobrados em triângulo. A quotidiania, o ar gélido a condensar-se no ar. O chão de tábuas de madeira, a vida que range a cada passo. Somos todos parvos, somos estúpidos. O cheiro a cabelo sem champô, o cheiro natural a amor acabado de fazer. O sol entra pela janela e aquece os corpos. A alma, essa, já esta bem quente. Pequenos olhares que dizem tudo, palavras que eliminam o nada. A cumplicidade não se pode comprar, pelo menos não aquela. Uma manha que podia ser tarde. É verão. É verão mas não esta demasiado calor, os corpos nus em cima da cama ainda são unos. Ninguém fala, mas aquele silencio é mais poderoso que mil sinfonias barrocas, mas expressivo que mil quadros de Vincent - fosse isso possível. É um pequeno almoço de aspecto singelo, de aparência sublime. O café evapora-se perfumando o ar, o croissant no prato é de um dourado cabelo de anjo. O tempo esta parado, nada acontece la fora, no mundo. O cheiro a Tejo, a brisa, o cais. Ampulhetas que pela força do desejo seriam voltadas ao contrario e no grão de areia exacto deitadas para que nada se mexesse. O azul, o branco, os caracóis ao ar. A cadeira sozinha no centro do quarto com um novelo no assento. O quarto parece uma pequena cela, mas toda a luz do mundo se encontra com a cadeira naquela divisão. Os campos de trigo lá fora, os corvos. As riscas dos lençóis. O silencio total. A memoria não precisa de som, não naquela circunstância, não naquele momento. Dormitar serenamente, ir acordando e amando. Amando com os olhos, com as mãos, amando em silêncio. A luz, sim, a luz. Rosas de aspecto velho a equilibrar toda a sala, todo o mundo se poderia dizer sob a sua homeostase.  O papel e a caneta levemente pousados sobre a cómoda. Corpos nus, puros e lavados de alma branca. A única verdade do mundo, sem necessidade de mais. A placidez do momento. Momento, suspenso no tempo, na memória e completamente inocente da metafísica.

domingo, 4 de dezembro de 2011


O que e um deus para um nao-crente? Nada! digo-vos eu. No prisma que vos apresento O-Todo-Poderoso Senhor Deus passa a ser deus, sem a capitalidade gráfica e ideológica a qual um ente perfeito seria intrínseco. Sou um homem de ideologias, não de deuses. E aqui estou eu, mais um insignificante ser do infinito imensurável a obliterar o dito "todo-poderoso". Perfeição e poder intemporal anulados por mera descrença de índole tão humana. E é assim, a fé, as ideologias, tudo submerso para o esquecimento pelo vórtice autoclismático do discernimento e do problematizar do insignificante Homem. Repare-se como o sobrenatural é uma criação tão nossa, tão humana. Ainda assim tem o seu valor, é um fenómeno algo interessante que pode ser fundamentado pelo nosso fatalismo - mais uma vez - tão humano e porque em momentos de desespero ansiamos para que o desfecho de tudo esteja para alem de nos. Que ridícula é a própria concepção. Explicamos os nossos medos com o monstro debaixo da cama. Ridículo, nada mais posso dizer... Por vezes sinto-me farto de pensar o mundo, a irremediável falta de sentido da existência atinge-me cada vez com mais veemência e intensidade.


Não conhecer a cara no espelho. Aprisionado nele mesmo, em mim, em si, no corpo. Prisão domiciliária para a mente, o degradar gradual. Passei a minha vida a fugir. Conheci pessoas, lugares, sorrisos e olhares, sons e visões. Peregrinei de porto em porto, passando as fronteiras da vida, a metafísica do sentido, a heterogeneidade tantas vezes homogénea da condição humana. Corri sem olhar para trás, refugiei-me do próprio tempo, iludi-me. A morte corre na direcção oposta, vai apanhar-me. A perspectiva do fim dos tempos, o buraco negro eterno e o oxímoro que esta frase representa. A realidade é tão abrangente, tão ampla e avassaladora que tem que ser fragmentada em pequenas trivialidades ridículas. Não sabemos o que fazemos aqui, não nos preocupamos. Procuramos explicações para tudo, queremos saber e ser donos de todo o infinito conhecimento e ao mesmo tempo, ironicamente, nada de importância significativa. Gosto de ser um espectador, um observador, um intérprete. Do meu cadeirão consigo por vezes ver tudo o que há, tudo o que vai haver. Mas nada disso importa, todas as minhas concepções e teorias metafísicas desaparecerão com a própria. Ridícula, é essa a condição humana.
Por vezes farto-me de ser um pensador... Qual o propósito não sei, mas vou continuar a empurrar a pedra até ao cimo do monte. Talvez um dia a mantenha lá no topo e me sente nela, observando tudo de cima.